ECOS DO PASSADO




ECOS DO PASSADO
  
(A dramática história de duas pessoas vivendo dentro de um único corpo)
  
LUCAS BERTOLUCCI






  Capítulo 1 - Quem é ele?

   Tenho uma história longa e conflitante. Uma história que vai mexer com sua vida, vai fazer você refletir muito sobre o comportamento humano. Você vai entrar na mente de um ser conturbado. Ela se refere à vida dupla de um homem. Duas personalidades opostas convivendo dentro de um ser. Essas duas personalidades viveram separadamente e nunca se esbarraram.  Nunca estiveram reagindo conjuntamente, pelo menos uma sabendo da existência da outra. É como se duas pessoas coexistissem num mesmo corpo, duas almas distintas numa mesma pessoa.
   Esse homem a quem me refiro sofreu muito e a muitos trouxe o sofrimento e a dor. Por onde passou deixou seu rastro de temor, medo e perdas. Um lado dele trouxe vida e alegria para uns, o outro lado fez muitos conhecerem o inferno. Ele conheceu a tristeza e a alegria; O amor e o ódio; A razão e a incoerência; A vida e a morte; O dia e a escuridão.
   Como explicar um caso desse? Como relatar, em poucas palavras, um fato diferente, inusitado? Às vezes acho que tudo isso não passa de pura ficção, de uma criação de algum autor lunático que brinca com a vida de seus personagens, que tece uma teia de acontecimentos que destrói a vida de todos que ele toca. Gostaria muito de acordar e ver que tudo isso foi um sonho. É duro encarar essa realidade, principalmente quando os fatos são tão taxativos.
   Não quero me prolongar nessa introdução, afinal só os fatos podem explicar o que realmente aconteceu com esse ser com duas personalidades distintas. Então, nada mais justo do que pedir que leia e analise toda essa trajetória atentamente. Eu mesmo já fiz isso várias vezes e não consigo chegar a uma conclusão definitiva. Às vezes o acho culpado, mas também o acho inocente, vítima de uma realidade absurda, vítima de um destino cruel que, com uma pitada de humor negro, bagunçou a existência de uma pessoa que, até então, se achava boa e carinhosa.
   Seu presente consiste num grande dilema: convive com um passado que o atormenta, um passado que ele desconhece, mas bem real. Ecos... sua vida se transformou nisso: ecos, ecos e ecos de um passado que todos conhecem, menos ele que se encontra perdido, perturbado e confuso.
   Ele olha para trás e vê somente nuvens. Tudo fica em névoas quando precisa se recordar de tudo que te aconteceu. Ele desconhece seu passado, sua vida, seus amigos, seus familiares, sua existência.
   A verdade foi um golpe muito forte. Ele se descobriu. Encontrou-se com seu EU obscuro e agora não sabe se deveria ter descoberto “a tal verdade” ou apenas continuar vivendo uma vida de mentiras.
   A Dúvida de aceitar a verdade dos fatos ou a verdade que ele descobriu dentro de si?
   Bem, é sobre esses dois aspectos que quero que o julgue. Ele merece ser condenado pelo que fez ou viver a sua nova identidade com total liberdade?
   Espero que utilize sua verdadeira alma para julgá-lo. Mesmo que ele nunca saiba de sua opinião, mas ficará feliz em apenas saber que suas palavras foram ouvidas.
   Esse homem que tanto descrevo se chama Roberto da Silva Pereira. Tem 35 anos, moreno claro, olhos castanhos escuros, pele lisa, estatura mediana, olhar penetrante, sorriso cativante e um rosto angelical. Essas são descrições de algumas das pessoas que o conheceram.
   Vou contar tudo sobre ele. A sua vida de onde ele se lembra, com fatos e relatos que vem do fundo de sua alma. Também mostrarei a versão dada pelas outras pessoas sobre seu caráter e suas crueldades.
   Esse caminho que irei te guiar vai mostrar a face de um anjo num corpo de um demônio, capaz de todas as atrocidades. Um corpo sem luz, sem uma gota de amor.
   Antes de começar a narrar toda história, preciso dizer que esse Roberto da Silva Pereira sou eu.





Capítulo 2 - O Começo


   A noite estava com um clima suave de verão. A lua resplandecia no céu, cheia e luminosa. Estava passeando pelo calçadão do Rio Vermelho na cidade de Salvador. Os bares estavam lotados de pessoas bebendo e se divertindo. Um som glorioso de vida. Jovens conversando, namorando e dançando ao som de músicas vibrantes e sensuais.
   Nessa época a cidade de Salvador torna-se um palco de grandes manifestações culturais. Em cada canto da cidade, artistas demonstram seus talentos. É algo de impressionar. O som, o ritmo, as danças, as coreografias, a sensualidade a flor da pele, tudo isso numa mistura delicada e sensível que interage com os casarios antigos, suas praias e toda sua beleza natural. Salvador é uma cidade encantadora e misteriosa. Quem chega à primeira vez enlouquece com seus atributos e quer sempre retornar, foi o meu caso.
   Pois bem, estava nesse clima. Parado em frente a um bar, com uma lata de cerveja na mão e um cigarro na boca. Olhava curioso todo esse mistério. Era minha primeira noite em Salvador. Estava fugindo, mas não consigo me lembrar nem de que, nem de quem. Apenas um fugitivo. A única coisa que passava pela minha cabeça era esquecer o que passou e cair numa noitada de diversão. Era como estivesse ali para afogar alguma mágoa ou mesmo começar uma nova vida. Lembro que me sentia cansado de algo muito pesado e perturbador em minha alma. Precisava relaxar e ali parecia ser o lugar perfeito.
   Aproximei-me de uma garota e ofereci a ela uma bebida. Era uma verdadeira princesa. Usava uma calça jeans apertada, uma camisa preta, bem curta e fina que deixava transparecer seus seios duros e arrebitados. Era morena; cabelos longos, lisos e pretos; tinha um sorriso inocente e um olhar penetrante. Uma presa fácil e disponível.
   Quando lhe ofereci a cerveja, ela se aproximou lentamente. Tomou a lata de minha mão e a levou a sua boca sem desgrudar os olhos dos meus.
- Obrigada. Como se chama, rapaz?
- Alberto e o seu? Esse foi o nome que dei, mas na verdade me chamo Roberto.
- Flávia – sua voz saiu como uma melodia suave e hipnotizadora – Pelo que estou percebendo você não é daqui. De onde você vem?
   Fiquei olhando para ela calado. Sabia que não podia falar muito sobre mim. Era arriscado. Tinha muitas coisas erradas com minha vida. Não podia correr este risco. O rosto da garota era de puro questionamento. Aquilo me desequilibrou, senti uma certa raiva se apossando do meu corpo e disse na lata:
- De lugar nenhum. Agora, deixa seguir meu rumo.
   Saí do bar e comecei a andar. Ela correu atrás de mim. Saltou em minha frente e me deu o maior beijo. Seus lábios foram um calmante. Uma onda nova e misteriosa de alegria invadiu meu corpo. Agarrei-a coma maior força e a beijei loucamente.  Parecia que queria tirar toda sua força vital pelos lábios. Imagens se formaram em minha mente. Uma onda de prazer tomou meu corpo, um prazer anormal, estava sentindo uma enorme sensação de poder se apossar dentro de mim. Aquela sensação demoníaca que sempre me perseguiu tomou conta do meu espírito e eu parei de beijá-la. Ela ficou olhando para mim com um sorriso encantador e em seguida falou com sua voz meiga.
- Que beijo poderoso, você me deixou sem ar. Não vou deixar você fugir assim. Olha Alberto! Não tenho nada a ver com sua vida. Apenas gostei de você e queria curtir essa noite ao seu lado.
- Você não acha que sou muito velho para querer ficar comigo?
- Não. E se for não me interessa. Você é um gatinho lindo e charmoso.
- Qual sua idade, garota?
- Flávia. Tenho dezessete, quase dezoito e aposto que você tem uns trinta e dois.
- Trinta e cinco – respondi sorrindo.
- Perfeito – ela ficou olhando para mim passando a língua levemente entre os lábios – E então, vai ficar aí parado ou vai ficar comigo?
   Eu a abracei e a levei de volta ao bar. Peguei duas latas de cervejas e fiquei na porta do bar no maior amasso com a garota.
   Naquele momento, de prazeres mundanos, me sentia um homem livre como todos que se encontravam naquele local. No fundo sabia que era apenas um devaneio meu, mas quis acreditar naquela mentira como se fosse meu último sopro de vida.
   Estava fascinado olhando para os olhos daquela garota e algo me dizia por dentro que tinha que tratá-la bem. Era uma sensação estranha, nunca senti nada igual por alguém. Era como soubesse que ela me ajudaria no futuro. Lembro-me que foram sentimentos conflitantes, mas não os tenho definidos em minha cabeça, nem tão pouco me lembro do que tinha medo e do que estava fugindo. Só sei que foi o único momento de bondade que ocorreu dentro do meu peito naquele dia. Uma bondade que jamais presenciei e que nunca pensei que fosse existir.
- Por que me olha desse jeito, Alberto? Você está me deixando com medo.
- Nada não, garotinha – passei a mão no seu rosto – Estava pensando em coisas do passado. Nada importante.
- Tem haver com alguma mulher?
- Não. É comigo mesmo. Não quero falar sobre isso. Essa conversa me irrita e me tira do sério.
- Você é muito estranho. Tem uma grande tristeza no olhar – ela me abraçou e me beijou suavemente pelo rosto e na boca. Estava alisando meus cabelos quando disse – O que te incomoda?  Porque age assim?
   Aquilo caiu como uma bomba nos meus ouvidos. Perdi a noção de tempo e espaço. Fiquei tão tenso que meu corpo tremia, comecei a suar e entrei em pânico.
- Tenho que ir embora.
- Espera aí – ela saiu atrás de mim – Mas que diabos deu em você? O que foi que eu fiz?
- É melhor ficar longe de mim. Você pode se machucar e não quero isso.
- Qual é cara, posso te ajudar.
- Esquece...
   Não sei explicar o que foi que aconteceu depois dali. De repente estava gritando feito um louco pela rua – “me deixa em paz” – parecia briga de namorados. Eu não parava de repetir a mesma coisa, as mesmas palavras “me deixa em paz”. A coitada sem entender nada, perguntando o que tinha feito e eu continuava a repetir a mesma coisa como numa música arranhada num velho disco de vinil. Tudo ficou uma confusão de palavras. Palavras soltas ao vento, ressoando como ecos. As coisas que falava não faziam o menor sentido para a garota, mas sabia, dentro do meu íntimo, que tudo aquilo estava sendo dito para alguma pessoa do meu passado.
   O meu desespero era angustiante. As pessoas do bar, todas na porta olhando aquela cena. Uma cena patética e sem identidade própria.  Tudo começou a ficar escuro na minha mente. Não via mais nada. Eram só vozes ecoando no meu cérebro, vozes do passado. Rostos apareceram, pessoas chorando, gritando, pessoas cheias de sangue. Nada mais fazia sentido para mim. Não sabia onde estava, nem o que estava fazendo.
   Neste momento de loucura agonizante, percebi luzes se aproximando pela rua. Eram luzes de um carro da polícia que fazia a ronda local. Não sei explicar o que houve. Fiquei apavorado e comecei a correr pela rua. Ouvi Flávia gritando desesperada para que parasse. Foi quando o inesperado aconteceu. Parei de súbito no meio da rua. Ainda deu para ver os rostos em pânico a olharem para mim.
   Senti uma dor enorme nas minhas pernas. Tudo começou a rodar em minha frente. O chão não mais existia e eu estava voando numa velocidade indescritível. Um grande baque na minha cabeça. A boca encheu de sangue e tudo foi ficando escuro aos poucos. Não conseguia mover mais nada em meu corpo. Estava num lugar completamente abafado. Tentei gritar, mas não conseguia pronunciar qualquer palavra. Muitas vozes começaram a surgir ao meu redor.
- Meu Deus!
- Alguém faça alguma coisa.
- Ele está todo ferido.
- Alguém conhece esse homem?
- Alberto...
- Você viu, cara? Ele correu que nem louco.
- Está morto.
- Alberto...
- Alguém anotou a placa do carro.
- A polícia passou uns minutos atrás.
- Chamem a ambulância.
- Ninguém toca nele.
- É isso aí, pode prejudicar.
- Ele parece ta respirando.
- Albertoooo...
- Parecia que estava drogado.
- Ele que se jogou na frente do carro.
- O motorista não teve nem tempo de frear.
- Albertooo... Alberto, fala comigo.
- Moça se controle.
- A ambulância vem aí.
- Abram caminho.
- Alberto... não morra, agüente firme.
   Os sons da multidão foram aos poucos se acalmando. Agora era um som estridente de sirene. Aumentando, aumentando cada vez mais. Nesse momento comecei a entender o que estava acontecendo. Fiquei com medo. Tentei, inutilmente, mover meu corpo e nada acontecia. Tentei, então, falar. Forçava palavras e nada. Forçava um nome e nada. Forçava apenas um gemido e nada. Era a confirmação, estava morrendo e nada mais podia fazer. Nada que tivesse ao meu alcance.
   O gosto de sangue era muito grande, sentia engasgar. Pensei em tudo que deixei de fazer e bateu uma tristeza muito grande dentro de mim. Era uma depressão tão grande que sentia meu coração como se estivesse sendo comprimido em todos os lados. Sentia meu corpo como um quebra-cabeça todo desmontado.
   Comecei a pensar nas coisas simples que nunca tinha dado valor, e, então, imagens foram se formando em minha mente. Imagens que passavam em alta velocidade. O pôr-do-sol, pássaros, nuvens, carros, montanha, rostos diversos, um sorriso de uma criança, comidas, a noite, minha casa, imagens de minha infância, meus sonhos, o rosto de Flávia...
   Aquele rosto era a única coisa real nos meus pensamentos, tentava ver outra coisa, mas nada aparecia, era como se todas minhas memórias tivessem sido apagadas e só restasse agora aquele rosto angelical.
   Tudo foi ficando confuso, já não ouvia as vozes das pessoas, já não entendia o que estava acontecendo, o gosto de sangue foi tomando conta de minha boca, do meu corpo, da minha alma. Sentia que eu era puro sangue, nada mais existia em minha pele, em minha sensibilidade, só sangue.
   Ao som de uma sirene estridente os pensamentos foram se tornando em cenas desconexas. Nada fazia mais sentido para mim. A razão deixou de existir e uma profunda escuridão tomou conta de minha alma. Um grande vazio escuro, sem luz e sem som. Era o mais denso sono, onde nada e nem ninguém penetrava. Estava sozinho e meu único companheiro era a escuridão total, o silêncio do vazio. Não sei explicar o que aconteceu nesse momento, minha vida simplesmente deixou de existir, passei a ser um ser sem nenhuma ligação com o real e com o mundo conhecido por nós. O tempo tinha parado para mim.






Capítulo 3 - A Escuridão


   Um mês já havia passado e continuava em coma no hospital público de Salvador – O Hospital Geral do Estado, conhecido como HGE.
   Ninguém sabia quem eu era, nem tão pouco de onde vinha. No dia do acidente estava sem nenhuma identificação e não residia na cidade. Torno a dizer: ninguém sabia quem eu era. Os médicos tentaram de tudo para achar um parente, um conhecido. Nada aconteceu. Era um estranho sem nome e em coma.
   Foi um mês sem registro, sem percepção. Não tive nenhum contato com a vida. Era um corpo inerte sobrevivendo por aparelhos. Recordações não existiam. Pensamentos, devaneios, nada tinha seu lugar. Estava num sono profundo e avassalador.
   Tinha mergulhado no nada, num mundo inexistente; Um mundo sem brilho, sem cor, sem sons. Não sei o que acontecia comigo. Estranho se pensar em algum momento de sua vida que você deixou de existir, mas foi assim mesmo que aconteceu e, da mesma forma que entrei nesse mundo inóspito, sair dele.
   Um dia do nada tudo começou a voltar ao normal. Não sei se posso chamar de normal aquele retorno. Não movia nada em meu corpo, mas passei a ouvir uma voz. Não era ainda muito nítida para mim, mas era uma voz. Uma voz que surgia no meio do nada e da escuridão e chegava até meus ouvidos para dar um pouco de tranqüilidade para aqueles primeiros momentos.
   Lembro-me que fiquei muito confuso. Estava dentro de uma total escuridão, onde passei a ouvir palavras. Aquilo, ao mesmo tempo em que me tranqüilizava por causa da melodia angelical da voz, também me desequilibrava, pois tentava, desesperadamente, chegar à voz e não conseguia. Um voz que parecia estar bem distante de mim, mas, ao mesmo tempo, perto o suficiente para entender suas palavras, pelo menos entender algumas delas
- Oi mocinho, bom dia – era mágico ouvir aquelas palavras. Meu único consolo, meu único alívio – Como está meu rapaz hoje?
   Ficava me perguntando quem seria a dona daquela voz. Tentei relembrar se já a tinha ouvido, mas não a identificava como uma voz familiar.
   Buscava imagens de minha vida para localizar fatos, pessoas, acontecimentos importantes e não obtinha resposta alguma. Ficava apavorado. O que estaria acontecendo comigo? Este era meu maior questionamento. Que lugar era aquele que me encontrava? Era sonho o que estava vivendo?
- Meu rapaz! Você já está livre dos aparelhos. Quando vai acordar para falar comigo?
   Aparelhos? Acordar? Essas palavras me levaram para uma outra realidade. Minha “voz meiga” acabara de me dar uma pista. Fiquei tentando decifrar aquilo, mas naquela altura era complicado de formular grandes questões. Minha mente era um embaralhado de palavras e idéias. Ficava tudo mais difícil. Toda vez que forçava a uma especulação de um grande raciocínio, tudo se perdia em imagens difusas. Uma grande névoa tomava conta de minha pequena existência.
   Foram momentos terríveis. Não sabia quem era, onde estava e nem conseguia formular grandes questões. Meus pensamentos eram que nem um quebra-cabeça. Tinha que encaixar peça por peça para poder entender a mínima coisa. Era como um bebê que através da repetição vai aprendendo o significado de cada palavra. Estava nascendo novamente e teria que construir uma nova vida, uma nova identidade.
   Não sei por quanto tempo fiquei nesse estado. Tinha consciência que estava passando por algo desesperador, mas não compreendia toda situação por completo. Tentava inutilmente falar com aquela voz: “Hei, você consegue me ouvir? Socorro... o que ta acontecendo comigo?”. Nada acontecia, a voz sumira e novamente me encontrava num total silêncio. Percebi, então, que tinha que me acostumar a aquele silêncio e a aquela situação e aprender com aquilo tudo e tentar chegar à voz de qualquer maneira. O som daquela voz me remetia a coisas boas, inexplicáveis, e eu senti um grande sorriso nascer dentro de mim.
  Uma força, que não sei de onde veio, começou a tomar conta da minha alma. De repente comecei a ter esperança, a ter confiança em sair daquilo e minha mente começou a sossegar e apaguei por completo.
   Fiquei nesse estado por uma eternidade, mas o que é uma eternidade nesse estado? Não sei explicar nem agora que me encontro bem. Só sei que me encontrava desperto e, pela primeira vez, sentia uma claridade tocar meus olhos. Aquele feixe de luz foi mágico para mim. Fez-me sentir vivo, uma alegria tomou conta do meu ser naquele dia. Ia ficando inebriado de tanta alegria. E foi assim, nesse estado de espírito, que senti uma mão alisando meu rosto. Aquele calor em minha face me fez ter uma sensação de algo familiar, fiquei eletrizado, queria falar de qualquer maneira. Gritava o mais alto que podia, tentava mover algo em meu corpo, tentava fazer o menor sinal para que aquela mão visse que estava vivo, mas nada adiantava, estava como uma estátua. Comecei a sentir um desespero e aquela linda sensação de bem estar estava ameaçada de sumir. Foi quando ouvi duas vozes.
- Como estava dizendo a senhora, não sei quem é ele. O conheci naquela noite e a única coisa que sei é que se chama Alberto.
- Alberto? Isso já é um começo. Pensei enquanto prestava atenção.
- Você não lembra de mais nada?
- Olha, estava num bar, o conheci, ficamos juntos por alguns minutos, ele ficou nervoso por algo que não entendi o motivo, daí ele saiu correndo e foi atropelado.
- Nossa que triste.
- Não deu tempo de saber nada dele e ele nada de mim.
- Espero que ele acorde e consiga desvendar esse mistério.
- Outra coisa, ele tem um sotaque forte, parece ser de algum interior de São Paulo. É só o que posso dizer.
- Se puder continue vindo aqui, é triste ver uma pessoa nesse estado e não ter nenhuma visita de parentes ou amigos.
- Pode deixar venho sim, sempre que puder. Com ele fora da UTI fica mais fácil. Gostei dele e quero que ele fique melhor.
- Então ele se chama Alberto e parece ser Paulista?
- Exato, é só isso que posso te informar.
- Colocarei isso no prontuário dele.
- Agora tenho que ir embora. Alberto, querido, tenho que ir embora, mas voltarei sempre. Não deixarei você sozinho nessa barca.
   Senti um beijo em minha testa. Uma onda de choques invadiu todo meu corpo e me agitei todo por dentro.
- Descobrindo alguma coisa a senhora nos avisa.
- Pode deixar, voltarei mais vezes.
   Quando as vozes sumiram, a alegria deu lugar a outros sentimentos. Fiquei mais tenso ainda, repetia para mim mesmo, centenas de vezes: “Alberto, Alberto, Alberto... Quer dizer que me chamo Alberto e sou paulista?”. Uma luz se iluminou em minha alma, agora sabia um nome. Era uma pista, um começo para entender tudo o que estava acontecendo. Mas, essa alegria foi cortada bruscamente. Em frações de segundos tudo mudou.
Imediatamente tudo ficou escuro e me vi caindo num abismo. Meu corpo foi ficando gelado, sentia um frio tremendo, um desespero tomou conta do meu ser, não sabia o que era aquilo, o que estava acontecendo comigo. Vozes foram aparecendo, umas baixinhas, outras como lamentos, outras num desespero que incomodava.
- Meu Deus!
- Alguém faça alguma coisa.
- Ele está todo ferido.
- Alguém conhece esse homem?
- Alberto...
   Tentava prestar atenção, mas o frio e a sensação de queda num abismo não me deixava entender aquilo tudo.
- Você viu, cara? Ele correu que nem louco.
- Está morto.
- Alberto...
   Meu corpo continuava caindo sem parar e cada vez mais rápido, sentia que ia me espatifar em algum lugar. Tentava me segurar em algo, mas onde estava não tinha paredes, nada, era apenas um vazio escuro.
- Alguém anotou a placa do carro.
- A polícia passou uns minutos atrás.
- Chamem a ambulância.
- Ninguém toca nele.
- É isso aí, pode prejudicar.
- Ele parece ta respirando.
- Albertoooo...
   Fui ficando apavorado, comecei a gritar: “por favor, alguém me ajude”, mas nenhuma daquelas vozes me ouvia. “Eu vou morrer, não me deixem cair mais, façam alguma coisa”.
- Parecia que estava drogado.
- Ele que se jogou na frente do carro.
- O motorista não teve nem tempo de frear.
- Albertooo... Alberto, fala comigo.
   Uma luz foi surgindo em baixo de mim, sentia aquela claridade ficar cada vez maior e mais perto. Meu corpo continuava a cair e cada vez mais rápido. Sentia o vento dilacerando minha pele, tamanha era a velocidade em que estava caindo. Nem sabia mais o que pensar, aquilo não podia ser real, só podia está tendo alguma alucinação.
- Moça se controle.
- A ambulância vem aí.
- Abram caminho.
- Alberto... não morra, agüente firme.
   Um som estridente estourou em meus ouvidos, parecia que tinham estourado uma bomba atômica ao meu lado, uma luz muito forte apareceu me deixando com muita dor nos olhos. Era um clarão muito intenso, não conseguia ver nada. Antes era uma escuridão que incomodava, agora era uma claridade que doía. O que estava acontecendo comigo?
Não sabia explicar e até hoje não sei dizer ao certo o que foi aquilo tudo. O clarão foi desaparecendo aos poucos. Meus olhos foram se acostumando com a luz ambiente e enfim pude observar onde estava. Nem sei dizer o que pensei na hora, fiquei olhando para aquela paisagem sem entender absolutamente nada. Era um lugar, extremamente, desértico, só tinha areia e pedra e era tudo de uma marrom muito escuro, quase preto.
- O que ta acontecendo? Que lugar é esse? Como vim parar aqui? Que confusão é essa? Estava num hospital ouvindo a voz de duas mulheres, uma enfermeira e a menina Flávia e agora estou nesse lugar...
   Não tinha explicação para aquilo, era algo que minha mente não conseguia compreender. Levantei, sacudi a areia do meu corpo e comecei a caminhar por aquele lugar esmo em busca de respostas. A luz era muito fraca, mas dava para identificar tudo ao meu redor. Era um lugar que não se via o fim, um campo infinito de areia e pequenas pedras pontiagudas espalhadas no chão, era tudo marrom escuro. O cheiro no ambiente era de enxofre e éter. Aquele cheiro me deixou enjoado, tonto, mas não tinha nada o que fazer para melhorar minha situação. Meus olhos ardiam, lacrimejavam a todo o momento, a poeira naquele ambiente me sufocava. Continuei andando sem rumo e sem direção, não sabia para onde ir mesmo. Precisava encontrar uma saída daquele lugar, precisava tentar encontrar alguém que pudesse me ajudar a sair dali.
   Não sei por quanto tempo fiquei andando, não sei se foram minutos, horas, dias, não faça a mínima idéia por quanto tempo fiquei naquela situação. Minhas pernas doíam, minha garganta estava seca, sentia uma sede imensa e sentia que iria morrer a qualquer momento. Meu corpo estava fraco, minha mente estava fraca. Comecei a sentir tudo ficar quente, peguei em minha testa e estava queimando, minha pele toda ardia, eu comecei a suar. Aquele ambiente hostil ficou quente de uma hora para outra. Quando tinha chegado ali, tudo era frio, gelado. Agora parecia que estava cozinhando naquele lugar. Era um calor insuportável. Deveria estar uns 50 graus, era a maior temperatura que tinha visto. Não tinha mais forças para andar, não conseguia respirar direito, estava sufocando. Sentei um pouco para descansar e tentei achar forças para seguir adiante.
- Como pode acontecer isso? Não entendo, as vozes que ouvi quando estava caindo eram as mesmas de quando estava sendo atropelado, mas se fui atropelado e estava num hospital, como vim parar nesse lugar?
    Fiquei muito tempo parado ali pensando em tudo que estava me acontecendo, olhava sem entender aquele lugar, era uma paisagem de um filme de terror. Tentei levantar, mas me sentia muito fraco, minhas pernas doíam, tinha andado demais. Meus pés estavam cheios de bolhas e tinha feridas por todos os lugares. Minha pele estava se soltando do corpo. Era aterrorizante. Não tinha reparado antes meu estado, fiquei em pânico em ver meu corpo todo deformado, parecia um monstro. Comecei a chorar, o desespero tomou conta de minha alma. Percebi que não sabia nenhuma oração, tentei lembrar um, mas nada me veio à mente. Tive que improvisar a minha.
- Não sei no que acredito, estou tão confuso que nem sei em que ou em quem acreditar. Não consigo lembrar meu passado, minha vida, quem sou. Estou num lugar aterrorizante e to parecendo uma ferida ambulante. Peço ajuda, imploro a qualquer força do universo que me liberte desse tormento. Mande alguém para me tirar daqui. Não sei o que fiz para merecer tudo isso. Se isso for um sonho, me faça acordar. Esse pesadelo está minando minha existência. To com tanta dor que até chorar dói. Por favor, me mostre uma saída, um caminho... sinto fome, sinto sede...
   Nesse momento vi algo brilhando a alguns metros de mim, de longe parecia um lago. Corri desesperado para lá. Minhas pernas estavam bambas, caí varias vezes. Ao chegar ao lago, me joguei nele e comecei a beber vorazmente. Estranhei o gosto daquela água, era doce. Muito estranho, tinha uma textura grossa. Parei de beber e olhei direito que água era aquela: “Meu Deus, é sangue. Estou bebendo sangue...”





Capítulo 4 - A Vizinha


   Falar de Robertinho para mim é muito complicado. Ele morava ao lado de minha casa desde pequeno, era o melhor amigo de meu filho. Os dois não se largavam. Viviam juntos o dia inteiro. Estudavam na mesma escola e eram inseparáveis. Ele era um menino muito bonito e carinhoso. Tinha um olhar triste, carente, mas não o culpava. Com a vida que levava... Às vezes chegava chorando lá em casa, mas nunca dizia do que se tratava, acho que ele tinha medo de expor o causador daquele sofrimento e sofrer mais ainda. Sempre achei que o causador daquilo tudo era o pai dele, aquele alcoólatra nojento.
   Nunca tive sérios problemas com Robertinho. Ele aprontava como toda criança, mas era coisa de criança. Ele era o filho caçula, tinha um irmão 10 anos mais velho do que ele. Esse irmão dele que era estranho, tinha um olhar de tarado, tinha medo dele. Ele olhava para todo mundo como se tivesse vendo as pessoas nuas. Não trabalhava num emprego fixo, fazia bicos. E ele nunca ficava sozinho naquela casa, sempre tinha algum adolescente lá com ele, era muito estranho. Às vezes achava meu filho socado lá na casa dele. Ficava possessa, gritava com meu menino. Dizia a ele que não queria ele lá com aquela criatura.
   Voltando ao Robertinho, o pai dele morreu de tanto tomar cachaça, acho que foi quando ele tinha 15 anos, não lembro muito bem. Aquele lá não valia nada, um moleque bêbado que procurava confusão todos os dias na cidade. Bebia demais e sempre brigava na rua. Quando chegava em casa sempre batia nos meninos e na mulher. Não sei como aquela coitada agüentou tanto tempo aquele sujeito.
    Se fosse comigo, já tinha matado aquele desclassificado. Sou paraibana e comigo a coisa é diferente, eu capava aquele desgraçado com um facão. Imagina se ia deixar um homem viver de cachaça e morar debaixo do mesmo teto que eu e, ainda por cima vim, me bater, só iria acontecer uma vez, porque eu matava o desgraçado.
   A mãe dele era doméstica, uma criatura doce e amável. Nunca vi um ser tão calmo e tão resignado com sua sorte. Ela aceitava tudo sem reclamar de nada, alias nunca vi aquela criatura reclamar de alguma coisa. Era uma trabalhadora de dar orgulho. Trabalhava o dia inteiro e chegava muito tarde em casa. Ainda ia cuidar da casa e da comida dos meninos, ela era incansável. Quase não via os filhos. Quando ela chegava, o Robertinho já estava dormindo e o outro estava na praça ou nos bares, igual ao pai. Durante o dia, Robertinho ficava lá em casa ou com o irmão.
   Fazia o maior gosto de ajudar a coitada, uma sofredora que necessitava da ajuda do próximo, por isso cuidava do menino e fazia o máximo para poder diminuir a dor daquela criatura. Ela sempre me agradecia com aquele olhar triste e de dor. Aquilo me matava, me dava a maior pena.
   Voltando ao Robertinho. Cidade pequena sabe como é, muitas vezes ficava sabendo de coisas que ele aprontava na rua, mas a maioria das coisas achava que era invenção daquele povo fofoqueiro que queria destruir a imagem de um menino tão meigo.
   Minha cidade parecia um cortiço, todo mundo falava de todo mundo. Sabe como é uma cidade com população pequena, quase todo mundo se conhece. Morava em Angatuba, São Paulo. Minha casa ficava bem em frente à praça, perto da Igreja. Tinha uma visão privilegiada de tudo que ocorria naquela praça. Era uma mulher muito bem quista na cidade e todos vinham contar o que estava acontecendo de importante. Não que fosse fofoqueira, imagina. Tinha que ficar informada, inclusive para me defender das más línguas. Aquele povo não era mole e não queria meu nome jogado na lama.
   Ficava sabendo de tudo. Uma certa vez briguei com uma vizinha porque ela ficou dizendo que meu filho e Robertinho estavam matando os animais da redondeza para saber o que tinha dentro deles. Foram encontrados vários animais abertos. Aquilo deixou a cidade inteira apavorada. Começou com animais pequenos, como pássaros, depois foram galinhas, cachorros, chegaram a encontrar uma vaca toda aberta e com todos os bofes para fora espalhados na terra tudo arrumadinho. Uma coisa terrível de se ver e durou alguns anos e ninguém descobria quem era.
   Começaram a dizer que era meu filho e o Roberto. Fiquei louca. No dia da vaca mesmo os dois estavam em casa gripados, com febre. A mãe do Roberto teve que fazer uma viagem para fazer uns exames em outra cidade e deixou o menino comigo. Deixei os dois em casa muito mal e fui à igreja ver a missa. Quando saí da igreja a confusão estava formada. A cidade queria tomar uma providência.
   Voltei para casa e mostrei ao povo que os dois estavam deitados, muito doentes. Aquilo era uma calúnia. Minha casa era cheia de animais. A gente criava cágados, cachorros, passarinhos, peixes e galinhas. Eles cuidavam dos bichinhos e brincavam o dia inteiro com eles. Como eles podiam fazer uma coisa dessas fora de casa?
   Calei a boca de todos, principalmente de uma tal de Angelina, a vizinha que falei antes. Aquela invejosa queria era difamar nossa família. Tudo porque casei com um ex-namorado dela. Que mulherzinha invejosa. Odiava aquela criatura. Ela fazia de tudo para falar mal de minha família, era uma coisa insuportável.
   Mas, Deus é justo, ela teve o que merecia. Morreu num acidente de carro e teve sua cabeça arrancada do corpo. Foi um choque na cidade. Todos ficaram perplexos. As pessoas logo esqueceram que aquela criatura falava de todo mundo, virou uma santa. De uma hora para outra era: Coitada, era uma boa moça; Tão nova, cheia de vida e foi morrer assim; Gostava dela;  Ela era engraçada... Engraçada uma ova, achei bem pouco. Ela teve o que merecia. Procurou tanto que achou. O lugar dela é no inferno.
   Sobre o passado do Robertinho é isso que tenho a dizer. Não posso falar o que não sei e o que não vi, sou uma mulher justa, dou a César o que é de César. Doa a quem doer. Não me importo nem um pingo. Não mudo uma vírgula do que narrei, essa é a única verdade que conheço sobre ele.
   Agora sobre o que falam hoje sobre ele nos jornais e tvs é algo muito novo para mim. Nunca percebi nada disso. Como disse antes, ele era um menino de ouro, nunca me deu trabalho. Era um amor de criança e de adolescente. Sempre foi um menino muito calmo. Tinha aquele olhar triste como disse antes, mas quem não teria tendo a família que o coitado teve, quem não teria com as dificuldades que passou a vida toda. Custo acreditar que tudo isso seja verdade. É monstruoso demais. Fico com vontade de vomitar só de pensar nisso. Há dias que ando tendo pesadelos com esse assunto, parece que fico vendo de perto tudo que narram nos noticiários. Acordo passando mal, suando frio e com muito pavor. Durante o dia fico numa tremedeira danada. Não to conseguindo me concentrar em nada. Só fico com a imagem do Robertinho em minha cabeça.
   Fico pensando em que diabos esse menino se meteu, com que tipo de gente ele andou para cometer tais atrocidades. Fico pensando onde ele ta agora, como ele ta, se ta precisando de alguma coisa, se ta comendo, se ta bem de saúde. Ele desapareceu das vistas de todos. Desde que meu filho morreu afogado que ele sumiu. Ninguém sabe de seu paradeiro, sumiu da cidade há 10 anos. Eu o tenho como meu segundo filho. Tenho muita pena dele.
   Ainda acho que tudo isso é invenção do povo. O pegaram para bode expiatório. Estão culpando o coitado por algo que ele não fez. Só posso fazer uma coisa por ele: rezar, rezar muito pela alma dele.




Capítulo 5 – O Inferno


- Meu Deus, é sangue. Estou bebendo sangue...
   Não consegui compreender o que estava acontecendo. Como poderia existir tanto sangue num lugar daquele e sangue fresco. Olhava para o lago de sangue sem acreditar, era tão grande que não via seu fim. Comecei a ficar enjoado. Minhas mãos e boca estavam encobertas do tal sangue. Tentava inutilmente me limpar daquela sujeirada, minhas roupas esfarrapadas ficaram toda suja. Tinha nojo de mim, fui ficando tonto, tentei me equilibrar, mas não conseguia. Fiquei balançando de um lado para o outro. Tentei me abaixar e nada. Meu corpo não me obedecia mais. Aquele vai e vem e aquele sangue todo foi me deixando muito mal, enjoado. Tentei controlar aquela sensação, porém não consegui. O enjôo aumentou mais e acabei vomitando tudo.
   Foi horrível, estava muito mal, debilitado. Não tinha condição para mais nada. Queria morrer logo, não fazia sentido algum aquilo tudo que estava me acontecendo. Queria meu fim.
   Olhei para o lago de sangue depois da última de tantas vomitadas que tinha dado. O lago de sangue começou a vim em minha direção. Aquele ambiente começou a mudar de cor, tudo ficou avermelhado. A areia que antes era de um marrom escuro, agora estava vermelha. As pedras que eram também marrons, também estavam avermelhadas.  Sentia meu corpo todo tremer, aquilo era um pesadelo. O sangue começou a se movimentar. Primeiro começou lentamente, não conseguia acreditar naquilo, era algo inexistente, aquilo não era real. Ele passou a se movimentar cada vez mais rápido e vinha em minha direção.
- O que é isso? To ficando louco, que tipo de delírio é esse? Socorro... socorro...
   Minha súplica de desespero não funcionava, o sangue chegou muito rápido em mim, começou a subir pelas minhas pernas, fiquei apavorado, tentei correr, mas não consegui. Meu corpo estava paralisado. O medo que sentia petrificou meu corpo, minha alma. O sangue borbulhava em cima de minhas feridas. Era muito quente, tão quente que queimava todo meu corpo. Comecei a gritar de dor e desespero. Não estava suportando mais aquilo, foi a pior dor que senti em minha vida. Meu corpo inteiro ardia, o sangue parecia chama ardente percorrendo pela minha pele. Achei que aquele era meu fim, iria me consumir todo naquela tortura, mas aquilo ainda não era o pior. O sangue continuou a subir bem devagar pelo meu corpo enquanto gritava de dor. Tentava me desvencilhar daquilo, mas como disse, não conseguia sair do lugar.
   Meu corpo já estava tomado de todo aquele sangue borbulhante e fervente quando esse se dirigiu para minha boca e narinas. Não consegui fazer nada. Comecei a engolir involuntariamente todo aquele sangue pela minha boca e pelo meu nariz. Eu engasgava. A dor aumentou mais ainda, agora além de sentir dor na minha pele, minhas entranhas estavam queimando. A dor foi tão intensa que cair no chão e desmaiei.
   Não sei por quanto tempo fiquei ali deitado numa imensa poça de sangue. Alias tempo era uma coisa que não existia naquele local. Não tinha como saber se tinha se passadas horas ou dias, pois não existia céu, não existia dia ou noite, era tudo da mesma cor. Fica difícil de explicar aquele lugar. Tudo era com uma iluminação bem baixa que dava para você enxergar ao seu redor, menos o que estava acima de você. Lá era tudo escuro. Não sei de onde vinha à claridade que iluminava toda aquela imensidão desértica.
   Estava exausto, já tinha acordado, porém não conseguia me mover e nem tinha vontade, só desejava minha morte. Tinha desistido de mim e de minha vida. Foi quando ouvi uma voz bem baixinha.
- Moço acorde.
   Senti algo me sacudindo, fiz um grande esforço e abri meus olhos. Fiquei muito surpreso com que estava vendo. Seria aquilo mais um devaneio meu ou era real?
- O senhor precisa sair daqui.
   Ouvi aquilo com bastante atenção. Agora estava acordado de verdade, tinha consciência disso. Na minha frente estava uma criança, ela devia ter uns 10 anos de idade. Tinha um rosto todo sujo de poeira e uma pasta gosmenta em sua pele. Não tinha nem como identificar qual era sua cor, de tão sujo que ele estava. Aquele menino devia ta sem tomar banho há muito tempo. Seus cabelos eram pretos e compridos na altura de seus ombros. Sua voz era suave e melódica. Suas roupas eram uma bermuda, uma camiseta e um casaco que ia até os pés, eram vermelhas e estavam limpas. Ele estava descalço. Não consegui entender como ele estava tão sujo e suas roupas tão limpas. Mais um mistério para um lugar tão irreal.
- Quem é você, garoto?
- O senhor precisa sair daqui.
- Que lugar é esse?
- Breve o senhor vai descobrir.
   Aquela criança era assustadora, ela tinha uma carinha de anjo, mas seu olhar era diabólico. Fiquei muito assustado.
- Estou indo naquela direção, gostaria de me acompanhar?
- Por que você está sozinho? Não tem nenhum adulto com você?
- Não preciso de adulto nenhum para me acompanhar, sei me virar sozinho.
- Mas...
- Senhor, quer ir ou não comigo?
- Ta, vou com você. Deixe-me levantar.
   Levantei-me com muito esforço, ainda sentia dor por todo o corpo. Mas, não tinha muito que fazer. Não sabia onde estava e era bom ta com alguém por perto. Assim poderia achar uma saída dali e não ia me sentir tão só.
- Estava te observando de longe.
- Então você viu tudo que aconteceu comigo?
- Sim, vi. O senhor caiu da escuridão, vagou muito e foi consumido pelo sangue de inocentes.
- Inocentes? Como assim?
- Inocentes que clamam vingança.
- Não entendo, mas o que tenho a ver com isso?
- Muito. Ainda não é hora de saber a verdade.
- Quando vai ser essa hora?
- No dia que seu filho completar um ano de idade.
- Mas não tenho filho nenhum e...
- Basta.
   A voz dele saiu tão potente que parecia que tinha saído de um alto-falante. O mais estranho é que ele falava sem quase movimentar os lábios, seus movimentos eram lentos e graciosos. Ele parecia bailar. Olhava para ele e a sensação que tinha era que ele não andava e sim flutuava. Aquilo era sinistro. Criei coragem e fiz uma pergunta para ele. Minha voz quase não saiu, falei gaguejando:
- Quantas horas to aqui?
   O menino começou a rir. A risada dele ecoou por todos os lados. Era como se tivesse vários dele por todos os lados, rindo cada um num momento diferente, pareciam ecos da mesma voz. Olhava para todos os lados e não via ninguém. Olhava para ele e ele estava parado me olhando, rindo. Fazia apenas um pequeno movimento em seus lábios. Mas, o que eu ouvia era uma gargalhada. Era impossível sair aquela gargalhada por uma boca quase imóvel, com um rosto tão sereno. Novamente olhei para os lados e tive absoluta certeza que não havia mais ninguém. Só era eu e a criança. Ele percebeu meu desespero e o riso aumentou mais ainda. Ficou tão alto e tão difícil de suportar que coloquei minhas mãos nos ouvidos. Aquilo estava me deixando surdo. Foi tão atordoante que cair no chão de joelhos. Nesse momento senti uma mão tocar minha cabeça.
- O senhor ta aqui há duas semanas.
   Levantei a cabeça, olhei para ele e disse:
- Isso é impossível. Como posso ter ficado tanto tempo sem comer e sem beber água?
- Seu corpo está se alimentando de sua própria carne, senhor, por isso as feridas. E sua sede foi saciada com o sangue.
   Não tive perguntas nem respostas para isso, apenas me calei. Meus olhos ficaram arregalados de pavor, olhei para meu corpo e vi as feridas sendo devoradas por minúsculas coisas que se mexiam dentro delas. Não sei identificar o que eram essas coisas. Tornei a ficar tonto, o enjôo voltou. Comecei a cambalear de um lado para o outro. A respiração aumentou, meu pânico era cada vez maior. Minha mente começou a funcionar de uma maneira muito rápida, milhões de perguntas vieram a minha cabeça ao mesmo tempo. Eram tantas perguntas que não dava conta de responder nenhuma delas. Olhava para aquela criança e meu pavor aumentava mais, como podia ter tanto medo de um ser tão pequeno e com aquela cara de anjo? Ele agora sorria para mim, era um sorriso doce e terno.
- Senhor, temos que ir. Seu tempo se esgota.
   Ele se virou e saiu flutuando por aquele chão de areia e pedras. Fiquei parado por uns segundos indeciso, sem saber o que fazer e o que falar. Criei coragem e fui ao encontro dele. As pedras no chão estavam mais pontiagudas, pareciam facas amoladas. Tentava pisar devagar no chão, tentava achar lugares sem elas, mas era inútil. Elas foram cortando, cada vez mais, meus pés. Por onde passava ia deixando pegadas de sangue pelo chão. Não tinha o que fazer tinha que sair dali. Olhava para trás para ver as pegadas e pude perceber uma coisa absurda. As pegadas pulavam do chão e se transformavam em sobras que corriam numa velocidade tão grande que não conseguia acompanhar. Elas passavam por mim como um raio, só sentia uma leve brisa roçar no meu corpo.
- Você ta vendo isso, garoto?
- Sim, to vendo.
- Você sabe me dizer o que é isso?
- São as almas dos inocentes que você bebeu. Elas estão com muito ódio.
- Ódio?
- Sim, muito ódio. Elas foram afastadas de tudo aquilo que elas gostavam.
- Mas porque?
- Foi o senhor.
- Eu? O que foi que eu fiz?
- O senhor não se lembra mesmo?
- Claro que não.
   Ele começou a rir.
- Que pena, você poderia se divertir com elas.
- Não sou esse tipo de pessoa.
- Senhor, nunca mais fale isso.
- Não gosto de ver os outros sofrendo.
- Senhor, não fale aquilo que não se lembra.
- Porque você nunca explica claramente as coisas?
- Sou apenas uma criança...
- Criança uma ova. Você tem que me explicar que lugar é esse e porque estou aqui e, mais ainda, você tem que me dizer como saio dessa porcaria de lugar.
   A voz dele era de pura apreensão e cinismo ao mesmo tempo. Ele olhava para frente fixamente. Aquilo me deixou mais enraivecido ainda.
- Silêncio, cale-se.
- Garoto, não me mande calar a boca.
- Senhor, olhe para aquele lugar. Ta vendo aquela passagem? O senhor não vai querer chamar atenção por onde vamos passar, vai?
   A voz dele era de pura ameaça. Olhei para onde ele apontava e comecei ver que tinha algo à frente. Era justamente o lugar onde as tais sombras tinham ido depois de passarem por mim correndo. Não quis saber nem do que se tratava, fiquei em silêncio como ele mandou. Voltei a andar, conferi as minhas novas pegadas, continuavam a mesma coisa. Elas se desprendiam do chão, viravam sombras e essas passavam por mim como um raio. Desisti de prestar atenção nisso, foquei no que estava a minha frente. Não demorou muito e a paisagem começou a se modificar. O chão de areia e pedras foram se transformando num terreno molhado, cheio de uma lama cinza claro. A gente pisava e os pés afundavam. Conferi o garoto, os pés dele não afundavam, ele continuava a milímetros do chão, aquilo era surreal.
   Olhei ao meu redor e foram aparecendo montanhas pretas com grandes vales entre elas. Não existia nenhum tipo de vegetação. Nós entramos em um dos vales. A visão do local era mais assustadora ainda. Montanhas tão grandes que não se via seu fim. A gente se sentia um inseto naquela imensidão. Das encostas das montanhas desciam minas de água. Aproximei-me desse líquido e o provei. Meu susto foi tão grande que recuei imediatamente. A água tinha sabor de lágrimas. Essas lágrimas saiam de grandes buracos entre as paredes das montanhas, pareciam cavernas.
   O silêncio não nos acompanhava mais. Agora ouvíamos lamentos, eram lamentos de dor, de desespero. Cada passo que a gente dava, a situação ficava pior. Tentei voltar, olhei para trás e o caminho que a gente tinha vindo não existia mais. Atrás de nós só existiam agora imensas pedras. Tínhamos que continuar naquele único caminho. Não tínhamos escolhas. Gritos, sussurros, pedidos de socorro, palavrões, tudo era ouvido agora em alto som. Olhei para os buracos nos paredões e pude ver sombras de alguma coisa nos observando. Fiquei apavorado e comecei a falar tudo embolado:
- O que é isso? Parem de gritar. Saiam daqui. Isso não existe. Que tipo de sonho é esse? To ficando doido. Isso não é real. Que tipo de medicamentos foi esse que tomei? To tendo alucinações...
   As sombras começaram a sair dos buracos. O garoto se afastou de mim. Fiquei parado sem saber o que fazer. Olhei para ele e ele sorriu para mim. Voltei novamente a olhar para as montanhas, não havia mais nada lá em cima. Olhei ao meu redor e levei um susto tremendo, em todas as direções tinham criaturas horrendas, eram criaturas com rostos envelhecidos, a pele seca e toda encolhida, eles não tinham dentes, eram criaturas pequenas, magras, com os ossos a mostra. A expressão deles era de terror, de muito sofrimento. Eles começaram a falar.
- Olha quem ta aqui.
- Você deu o ar da graça na nossa terra?
- Que honra tê-lo aqui.
- Sangue... ele ta sangrando.
- Ta me dando uma fome.
- Hum, ele ta sendo comido vivo.
- Quantas feridas.
   O pavor era pouco para mim, não tinha palavras para descrever o que sentia naquele momento. Comecei a socar o ar e a gritar loucamente.
- Saiam daqui, me deixem em paz seus malditos.
   Eles ficaram enraivecidos depois dessa minha reação.
- Olha quem ta chamando a gente de maldito.
- Seu verme.
- Seu moleque, cadê aquele homem que se julgava corajoso?
- Você vai apodrecer aqui.
- Acabou sua paz, seu miserável.
- Nós teremos nossa vingança.
- Assassino...
- Suicida...
- Sim, ele é um suicida.
- Ele se jogou para morte.
- Você não tem mais salvação.
   Não conseguia entender eles, tentei revidar.
- Não sou suicida, parem com isso.
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
   Eles começaram a me atacar, passavam por mim e me batiam, me beliscavam, me mordiam com dentes que antes não estavam lá.
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
   Uns rumavam pedras, outros me chicoteavam.
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
   Começaram a aranhar meu corpo.
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
   Outros arrancavam pedaços de minha carne e comiam. A dor era tanta que me joguei no chão. Eles pularam em cima de mim.
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
- Suicida...
   Não sabia o que fazer. De repente ouvi uma voz muito forte e alta gritando, reconheci que era a voz do garoto.
- Parem, parem... Saiam daqui suas criaturas nojentas, repugnantes.
   As criaturas saíram de cima de mim e correram para seus buracos escuros. Na hora senti um alivio que me acalmou momentaneamente. Olhei para o garoto tentando dizer a ele que agradecia muito a atitude dele. Mas, nenhuma palavra saia da minha boca, estava exausto, sem condições de esboçar qualquer reação.
   Ele tinha me salvado, precisava agradecer, precisava encontrar forças para dizer obrigado. Mais uma vez tentei falar com ele, mas meu corpo era uma dor insuportável. Não demorou muito e o garoto se aproximou de mim com aquela cara de anjo e aquele olhar diabólico. Foi encostando lentamente, chegou bem próximo de meu rosto. Dava para sentir seu hálito, tinha um cheiro de peixe morto. Aquilo me deixou enjoado com vontade de vomitar. Ele sorriu para mim e disse:
- Senhor, agora é minha vez, to com fome. Tem semanas que não me alimento.
   Dentes enormes surgiram da boca do garoto. Fiquei apavorado e tentei reagir, mas antes de qualquer atitude minha, ele olhou para mim com uma cara de alegria e pulou no meu pescoço. A dor que senti foi tremenda, ele estava arrancando pedaços de minha carne com aqueles dentes pontiagudos, e mastigava com a maior voracidade.
   A sua saliva era como ácido, queimava minha pele e suas mordidas me causavam muito dor. Ele saiu do meu pescoço e foi para meu peito. Olhou em meus olhos, sorriu, pegou suas pequenas mãozinhas e enfiou na minha pele, só deu tempo de ver meu coração pulsando em suas mãos.
- Alberto, meu querido, cheguei para te ver.




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